terça-feira, 6 de julho de 2010

AMOR : esse estúpido sentimento




Amor...
Duradouro, perene.
Firme e compacto.
Resistente às intempéries.
Por vezes, corrupto: hiato de desejo efêmero
Por qualquer passante...

Amor...
Inabalável, inexorável,
Cravado na alma de quem ama,
Na profundeza da gente humana,
Onde nem o sopro violento de Favônio
Balança.

Amor...
Passeia pelas veias,
Que no crepúsculo da vida
Rende-se ao senhor tempo...
Amante cansado...
Amando a amada por entre os anos...

Soluça e baixa a cabeça.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

PARTE DOIS - O GATO

–Vai parar onde? (B)
–Parar? Parar pra que? Abre uma, dá um tirinho aí na sua carteira mesmo, se for boa a gente vai lá em casa e bota no prato...(O)
–Tá sozinho?(B)
–A mulher viajou, só tem o gato por testemunha...(O)
–E se for baldeada?(B)
–Ora... A gente derrama tudo aqui no carro mesmo, bebe umas quatro cervejas e vai pra casa dormir...(O)
–Bom, essas duas bastam, né? Não vou ficar "no saci" entrando em boca de cocaína de madrugada. (B)
–Claro, a gente nem tem mais idade pra isso... (O)
–Que papo o seu de Deus, cara...(B)
–Besteira... Rola... E você emendou com um bocado de coisa do arco da velha.(O)
– “Arco da velha”, tá retado hoje... Aprontou aí? Vou encostar e “tum”, jogo rápido, viu?(B)
(tum) (O)
(tum) (B)
–Pôôôrraaaaaa! (O)
–Veneno da pôrra!!! (B)
–Vamos lá pra casa. (O)
–Vamos comprar cerveja, tem o que beber lá? (B)
–Um conhaque velho da pôrra. (O)
–Lacrado? (B)
–Pôrra de lacrado, tem uns três dedos, pare no posto pra umas latinhas, a gente aproveita desce da outro “tum” e bebe duas ou três lá mesmo pra amenizar a travação contemporânea. (O)
– “Travação contemporânea”, puta que pariu... (B)
–Temos cabedal para usar a linguagem decentemente por que não usar? Estamos de folga... (O)
–Mas é perigoso usar “contemporâneo”. (B)
–Por quê? (O)
–Fica parecendo que essa travação vem se arrastando há décadas e não é assim... Eu parei e você continuou. (B)
–Continuei, mas parei também... Se não a mulher me largava. (O)
–Você parou de cheirar por causa da mulher... (B)
–É... Sei lá... Talvez... Parei por algum motivo, não via mais “razão”, como os caretas dizem, pra cheirar cocaína... Aí, aproveitei que descolei uma mulher gostosa e parei... Ela também não gostava... (O)
–Mulher nenhuma gosta, a não ser aquela maluca que você arranjou naquele dia da eleição do Diretório dos Estudantes, lembra? (B)
–Lembro, a gente emprenhou a urna e derrotamos os partidários. (O)
–Pôrra, isso tem uns quinze anos, né não? (B)
–Tem. (O)
–E a criatura virou deputada, deve cheirar pra caralho lá no congresso. (B)
–É... O posto, para. (O)
–Bota em sua carteira mesmo, a gente dá um “tum” aqui... Pra gente não ficar saindo para o banheiro e despertar curiosidade de careta sem leitura...(B)
–É verdade...”tum”... Toma... (O)
– “tum”... Será que a vida era melhor naquela época... Naquela contemporaneidade” diria você... (B)
–Alguma coisa acho que sim... Acho que tinha mais respeito uns pelos outros... (O)
–Como assim? A gente não respeitou as leis eletivas para emprenhar urna... (B)
–Besteira, ali era uma eleição de estudante... (O)
–É, mas quem garante que sua namoradinha muito doida da época e hoje deputada não fez, ou faz, falcatruas dessa estirpe na política “à vera”? Você garante? Acha que ela respeita a legislação e o que diz o TSE? (B)
–Eu não garanto nada e não é só ela que apronta ou desrespeita as leis, ou manipula votos, ou sei lá... Os caras tão aprontando com o dinheiro público, desrespeita o meu, o seu bolso, o mundo inteiro fica sabendo e eles nem aí... Caras de pau. E a gente já conversou sobre isso lá na boca. (O)
–Pega as cervejas, o troco e vamos... Você disse que está sozinho, não foi?(B)
–Eu e o gato. (O)
–Pluto? (B)
–Não, chama-se “Félix” (O)
–Ah, bom! Fico descansado... Ele não é delator como o de Poe... (B)
–Não, que é isso? Ele gosta de leite... (O)
–Caça, pelo menos? (B)
–Nunca vi barata nem rato lá em casa... À noite ele fica ligado. (O)
–E o carro? Aquela sua rua é cheia de ladrão. (B)
–Deixe de preconceito, o bairro é pobre, mas é limpinho, e os “bichos soltos” da área conhecem você... Sabem que você é o professor maconheiro... Isso é uma glória para eles, sabia? (O)
–O fato de eu ser professor ou maconheiro? (B)
–Os dois. (O)
–Coitados... Conheço um médico que só atende depois de cheirar uma grama. (B)
–E o engenheiro que fumou pedra e construiu a piscina sem ralo. (O)
–Conheço esse também (risos)... (B)
–Aqui... Pode deixar o carro aqui, sem problemas, a rapaziada ali olha... (para os jovens sentados na calçada que os observavam ao sair do carro) “Aí moçada dê um look, no móvel, se ligou?” (O)
–Aí moçada! (B)
(escadas)
–Não repare a bagunça... aliás você também é bagunceiro. (O)
–Esqueceu que conheço a casa? (B)
–Fizemos muitas farras aqui, não foi? (O)
–Isso... (B)
–Bichaaaano, bichaaaano, ali... Coloque as cervejas na geladeira e traga um prato da cozinha... Vá lá, a casa é sua, você sabe todos os caminhos, vou colocar leite para o gato... Bichaaaano... (O)
–Sempre literatura fantástica... (B)
–É, sempre foi meu fraco, esse livro é bom... Tem um “Ladrão de Cadáveres” aí, muito legal, “Bicho Papão” também... (O)
–Dino Buzzati? (B)
–Isso, não gostei muito porque ele matou o bicho – papão, mas a narrativa é ótima... “O Homem da Areia”, excelente e “Teleco, o coelhinho”, conhece?(O)
–Conheço... O primeiro de Hoffman e o coelhinho de Rubião, fala-se pouco desse autor na literatura brasileira...(B)
–São as tais injustiças dentro da literatura... A literatura é como a vida...(O)
–Aqui, vem, “tum”... (B)
– “tum” (O) A cerveja...
tum” (B)
–Outra já? “tum” (O)
–A cerveja e o brinde, a nós dois, a Félix que está quietinho bebendo seu leitinho e à literatura que faz com poucos conheçam muitos... (B)
(brinde)
–Pôôôrraaaa, caralho, puta que pariu... (B)
–O que foi? A parada caiu no chão?(O)
–Não...(B)
–Aaaaaaahhhhhhh! (O)
–Caiu no leite do gato. (B)



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domingo, 27 de junho de 2010

PARTE UM - NA BOCA

Você acredita em Deus? (Osório)
E isso agora?(Bocanegra)
O que?(O)
Essa pergunta que você me fez...(B)
O que tem? Você acredita?(O)
Agora não é hora para falar nisso.(B)
Tem hora para perguntar se alguém acredita em Deus?(O)
O que você tem?(B)
Responda, caralho.(O)
Você acredita?(B)
Perguntei primeiro.(O)
Sei lá...(B)
Acredita, não acredita? Ou vai dar uma de durão e dizer que é escritor ateu...(O)
Não sou durão e não sou escritor.(B)
Não é, mas escreve versinhos “calientes” para las ninas... Entonce, já se arrependeu alguma vez?(O)
O que você tem?(B)
Nada... Só pensei em Deus agora...(O)
Então fez algo e você que se arrependeu...(B)
Não... É preciso se arrepender para acreditar em alguma coisa?(O)
Deus não é alguma coisa...(B)
Você acredita, então... Por essa fala sua, você acredita em Deus... Não acha que está na hora de sair da mundanice... (O)
Não... E agora?(B)
Agora o que?(O)
Essa ladeira.(B)
Engate a primeira e suba.(O)
É de barro, pode derrapar...(B)
Você dirige bem.(O)
E lá em cima?(B)
Vai chegar um cara aí na sua porta ou na minha aqui no carona e aí...(O)
Ele já vem com o bagulho?(B)
Às vezes... Se conhecer o carro sim, mas você nunca veio aqui, veio?(O)
Aqui, não.(B)
Então ele vai encostar, olhar, dar muxoxo de traficante durão, perguntar quanto quer, essas coisas...(O)
Tá armado?(B)
Não sei... Acho que não. (O)
Isso é uma tristeza... A gente não tem aptidão para ser feliz, tem vir aqui, comprar droga e depois sair por aí sem destino, doidaço...(B)
A vida do homem é vento...(O)
Onde você foi tirar isso?(B)
Sei lá... Acho que foi um cara religioso desses aí que ficam enchendo o saco dos outros na rua, para um, para outro, e diz que é a palavra do senhor, acho que algum desses me falou isso outro dia...(O)
E aí você vira para meu lado? É vem o cara... Cadê o dinheiro...(B)
Qué quanto?(TRF)
Duas.(B)
Pare ali, ó... E aguarde...(TRF)
Será que esse cara vai demorar?(B)
Tá com medo?(O)
Quem tem cu tem medo...(B)
Você acredita em Deus?(O)
Vá pra pôrra... Você acha que Deus vai proteger quem vem aqui comprar “barato”? Ele deve tá retado vendo a gente aqui... E se ele existe, tá ocupado com quem tem fome.(B)
Mas isso é um problema dos políticos e não de Deus... Deus colocou a comida no mundo, basta ser bem dividida...(O)
Ah! E você acha que político algum vai dividir o quinhão das cuecas?(B)
Das cuecas, não, mas o que sobra.. e falei da divisão de comida.(O)
Ora, ora, meu amigo, você com quarenta anos e tamanha leitura ainda não conhece os homens do mundo? Tudo que “os homens” fazem é para matar os outros de fome... Sabe aquela história que um cara dá uma facada no outro com uma faca enferrujada? Se não morrer da furada morre do tétano... Agora diga que isso é clichê... Tudo é, e existe, para quem tem tudo, quem tem tudo quer o nada de quem nada tem... se liga, cara...(B)
Sei não, enquanto a gente se aplica aqui, sai do mundo consciente os caras se aplicam por aí, aproveitando nossa consciência inconsciente e devoram tudo que é do homem... Você tá certo... Eu acho...(O)
Claro...Outro dia vi na televisão que a mulher caiu de uma maca num hospital público quando ia dar à luz... Isso é só pra exemplificar o que a gente falava, mas é o seguinte: não sou de assistir TV, não acredito nessa massificação de informação que é vomitada, pra mim neguinho inventa mais do que informa... É mais prático pra fomentar a improdutividade racional... E a fome que tanto preocupa você e o Deus que está em sua cabeça desde cedo.(B)
Improdutividade racional”... É tudo aberração... Piores do que “Freaks”(O)
Efeito “Montag”, ou “Fahrenheit 451”.(B)
É verdade, um breve exemplo disso é nossa infelicidade conjunta em cheirar cocaína...(O)
Você acha que somos infelizes e improdutivos porque lemos? Ou porque cheiramos? Ou os dois ?(B)
Os dois... Mas o que há de fazer nesse mundo globalizado? Pensar... Sucumbir...(B)
Confiar nas autoridades ou em Deus? Eis a minha pergunta...(O)
A sua pergunta me deixa sem resposta... Sobretudo com esse mundo de pobreza. (B)
Que pobreza? Essa daqui da boca ou do mundo inteiro?(O)
Esse cara tá demorando.(B)
Aqui, saia fora... (TRF)

quinta-feira, 10 de junho de 2010

TEXTO INÉDITO, ESQUECIDO, ACHEI POR ACASO AGORA...

A Patroa era escritora. Ou jornalista. Talvez professora das histórias que se contam nos livros, não tinha certeza de qual ocupação aquela mulher exercia. Só sabia que ela vivia debruçada sobre livros e papéis. Pensando e escrevendo. Seu nome deveria ser Pensamento. Conhecia nomes esquisitos e difíceis. Falava ao telefone em outras línguas com uma naturalidade original de quem mora no estrangeiro. Encabulada, Lúcia chegou perto da escrivaninha em que ela trabalhava. Pescou alguns papéis, mas não entendeu nada. Contudo ficou olhando maravilhada as letras, pôde perceber com a real dificuldade de leitora desacostumada que se tratava de poemas. Pois havia em cima da mesa um papel ofício com um nome escrito bem no meio. Poesia. Lembrou-se de uma vez, lá mesmo na casa da Patroa, de um jantar oferecido. Lúcia não foi para casa, ajudou nos petiscos, bebidas e no prato principal. Era um jantar para um tal escritor de outro estado, era muito famoso e importante, pois todos o tratavam com reverências e mesuras. Ele, o escritor, não gostava de muita lambição, rapapé. Fazia careta nas costas daquele que lhe lambia as botas. Contudo uma frase que ele falou não se sabe para quem, ficou para sempre na memória da empregada.

_Mas para que serve mesmo a poesia? Para que servem esses versos que ficamos horas a pensar e depois de escritos ficamos a conversar sobre?

Não houve resposta. Houve sim um silêncio terrível. Parecia até que o jantar tinha acabado. Entretanto, logo depois à omissão sepulcral, o tal escritor soltou uns versos de Mário Quintana. Eram assim:

Eu sonho com um poema
Cujas palavras sumarentas escorram
Como a polpa de um fruto maduro em tua boca,
Um poema que te mate de amor
Antes mesmo que tu lhe saibas o misterioso sentido:
Basta provares o seu gosto...”


Em seguida, ele mesmo completou.

_A leitura de um poema não tem ou não busca significado e provavelmente não serve mesmo para nada, contudo o leitor terá naquele momento único o prazer deleitoso de ser abraçado e amado pela palavra... Os dois amantes, o leitor e a palavra...

sexta-feira, 7 de maio de 2010

NOSTAGIA URBANA E SAUDADES DE UM AMOR NÃO CONCRETIZADO



Foi num clima de romance que fui pela primeira vez à Ponta de Humaitá, na Boa Viagem. Tinha dezesseis anos e Berenice quinze. Foi a ela que ofereci “chega de saudade” como se fosse eu que tivesse escrito, dois dias depois ela descobriu tudo ao ouvir um vinil que eu mesmo presenteei e não lembrava. Tom & Vinícius. Zangou-se com razão, daquele dia em diante comecei a reparar melhor as imagens ao meu redor e rabiscar letras genuinamente minhas para Berenice. Pensamos assustados, já no Humaitá, que todo aquele sol que ali se ia, cairia sobre nós e nos engoliria. Era um sol enorme e alaranjado, parecia estar se espreguiçando, que a Ponta de Humaitá oferecia a nós dois amantes. Eu jamais esqueceria Berenice e seus olhos oblíquos e tristes. Seu rosto liso e macio que dava forma a sua voz pueril e seus cabelos de Iracema. Naquele instante ali, esqueci a seleção de Telê. Só Berenice dissuadia meu pensamento canarinho, até então o que me importava era ganhar a copa do mundo em Barcelona, Madri ou nas ilhas Tenerife. Sonho que se frustrou mais uma vez naquelas datas, como se sabe na longínqua alcova do estádio Sarriá . Então andei com Berenice sobre a cidade de São Salvador.

Desde sempre sentia meu envolvimento intrínseco e peculiar com os lugares que ia, sobretudo com meu pai. Lembro-me perfeitamente que toda vez que chegávamos, eu e meu pai, a praia de Itapuã, aquelas ossadas gigantes de baleia espalhadas sobre a praia me davam medo e dor de barriga. Era filho da cidade e de vez em quando ouvia umas gargalhadas invisíveis de satisfação comigo. E achava que a natureza de Salvador ria para mim. A apreensão também me assaltava quando ouvia minha mãe falar de Fundação Politécnica. Era o dentista. Tinha pavor, aliás, ainda tenho. No entanto quando chegava à Avenida Sete de Setembro e via o movimento, já corriqueiro dos anos de chumbo, anos setenta, de AI’s e estrelas de ombreiras mal polidas, onde todos estavam submetidos à obediência civil americana, estúpida, grosseira e mortífera, sentia, entretanto e paradoxal ao movimento turvo, um alívio de amálgama. De uma forma ou de outra estava protegido em minha cidade. Praça da Sé e o Elevador Lacerda, Farol da Barra e a praia de Ondina.Tudo romântico e paisagístico, gostava de beber Fratelli e crush. A vida era muito mais que um sol estático, amigo Drummond. No entanto esse conjunto de coisas e sentimentos de urbis deve-se somente à minha existência. Em fazer parte do espaço que não sei como me escolheu e acolheu. Sem ser poeta e andando em lodaçais macadames, bebo, fumo, desejo, julgo e gargalho em Salvador. Um riso largo, caliente e tropical. Ao mesmo tempo em que entristeço, não sei mais onde está Berenice. Torno-me então poeta e sinto toda a quentura morna, modorrenta e cheia de pachorra, de um pôr do sol na lembrança tupi da índia Berenice. Suas frases tremidas e arfantes ao brincar comigo na rampinha do Teatro Castro Alves no dia que o papa morreu. Ela sumiu, virou-se e esqueceu que existo.

Agora estou na rua, como um miserável vagabundo. Rindo à-toa, sem itinerário, mas na rua, como um poeta sem casa engolido pela cidade de santos sábios velhos e africanos. Pregando poesia e arte nessa infinita inquisição. Na contramão, há as pregações irresponsáveis de inquisidores que não querem o poeta por perto. Ele, eu o poeta, bole insistentemente com a consciência, e a inconsciência coletiva ou singular, de quem pára para ouvi-lo. Deus e o diabo estão por aqui, na rua. Na 28 de Setembro, na Travessa da Ajuda, no Porto da Barra. Na madrugada com aqueles que servem à literatura marginal. À margem do querer e eu também escrevendo sem margem. Do ler, romantiquê. Não mais fui à ponta de Humaitá e agora só bebo conhaque. Hoje sem Berenice meu pensamento é imundo. Vivo nos becos sombrios ao lado do carnaval, na Rua do Sodré e na Gamaleira sem dilúculo de dedos rosados. Sem crepúsculo sonolento e romântico lá da ponta...

terça-feira, 4 de maio de 2010

COSME DE FARIAS (OU O QUE ACONTECE DE FATO COM OS JOVENS ATUALMENTE?)




Com olhos e ouvidos abertos para o social, ilibado, incorruptível, qualidade rara nos dias de hoje aos homens públicos e não públicos, pobre, e mais importante, um ser pensante. Era Cosme de Farias. Contam-se histórias interessantes sobre o rábula. Numa delas, diz-se: o major sentindo-se revoltado com a injustiça praticada contra um réu no tribunal, levantou-se e, ao lado do juiz e dos jurados, ficou por ali com ares de quem procurava algo pelo chão. Intrigado, o juiz perguntou o que ele procurava, eis a resposta “A justiça, meu senhor, que nesta casa anda escondida”. Debatia com o promotor e usava sua oratória ousada e eloqüente. No último dia dois de abril seria mais um aniversário de vida de Cosme de Farias.

O major Cosme de Farias saiu de Paripe onde nasceu para dar seu nome a uma rua de barro, em Brotas, antes chamada de “Quinta das Beatas”. A rua Cosme de Farias era uma quietude bucólica, talvez até lhe coubesse um movimento árcade, “carpe diem”, Cosme de Farias! Isso outrora. Hoje é uma praça de guerra, “Faixa de Gaza” de Brotas, jovens ensandecidos sem motivo aparente para tanta sandice sanguinária, mas cegos para as razões de sobra para indignar-se. Indignar-se pela acentuada (in)diferença social, a má distribuição de renda e emprego, a escassa cultura, escassez da cultura de pensamento e raciocino não a do quadril que estimula perversão ao invés de algum pensamento crítico para mudar ou transformar as coisas da vida, indignar-se pela falta de conhecimento em geral. Indignar-se pelo próprio desinteresse aos livros à mão cheia que estão nas prateleiras das bibliotecas criando mofo, teias de aranhas e traças pelo não uso. Mas não, matam-se. Simplesmente, matam-se. Não sei se vale de alento repetir o bordão da comunidade que se conforma fácil e se acomoda prisioneira dentro de casa: “a violência está em todo lugar”... Está mesmo, mas...

Cosme de Farias morreu pobre, deixou um legado de sabedoria para a grande maioria dos seus vizinhos. Parece que tão valiosas informações não foram passadas para gerações vindouras, excetuando aos que de fato trabalham.
Tudo indica que deixou pérolas para os porcos.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

TRECHO DE UM DOS CONTOS QUE COMPÕE O LIVRO "O VELHO"

Um dos meus contos que mais gosto - TRANSE RITUALÍSTICO

Foi quando lambi Eleonora pela primeira vez que a minha memória brilhou. Fingia que dormia e ia, em seguida, espreitar minha mãe e meu pai antes de dormir. Ouvia de mês em mês meu pai dizer para minha mãe.

– Ah, Luciana! Que maravilha de sangue.

Ele estava com a cabeça enterrada entre as pernas de mamãe. Sempre tive curiosidade de saber o que aquilo significava e voltava para a cama com o gosto de sangue na lembrança. Ficava intrigado também com o sussurro de pathos de minha mãe emitia. Parecia uma comoção empírica que ela tirava do fundo da alma. Ao mesmo tempo a angústia e o remorso de pecador me perseguiam lado a lado. Sentava na cama e rezava o pai-nosso e a ave-maria.

– Não me castigues, ó Deus, todo poderoso! Livrai esse filho, ainda menino, da expiação luxuriosa.

E então estudava Latim para me tornar padre. Havia um sacerdote estranho e esquisito, que contava histórias escabrosas e em todas as oportunidades as contava num ímpeto irregular, olhando para mim. Como se soubesse o que eu seria em poucos anos a partir dali. Tinha uma fundura nos olhos e um olhar penetrante de quem quer hipnotizar. Todos tinham medo, menos eu. Eu ria de través querendo despertar um desejo obscuro. Foi assim que percebi qual a data em que meu pai chupava o sangue de minha mãe. Era todo dia vinte e oito. Cresci espionando todo dia vinte e oito do mês. Quando era adolescente, lá pelos quinze, dezesseis, eu olhava e depois me masturbava gozando um prazer estranho. Prazer de ter minha mãe. Queria ser Édipo. Acho que minha mãe chegou a perceber, pois um dia, ao andar pela sala, ela baixou os olhos em mim e me viu teso olhando as suas ancas.

E assim fui crescendo, esperando ter uma mulher e sem conseguir nenhuma.

Eleonora chegou para cuidar de meu pai. Era uma sarará bonita e grande, cheia de sardas pelo corpo. Meu pai ficou estafermo, não servia mais para nada. Minha mãe ia receber o soldo da aposentadoria e deixava a metade na farmácia. Se não fossem as casas de aluguel que construiu, teríamos passado fome. Eu não sabia o que eu mesmo era. Não consegui ser padre. Um dia vi minha mãe conversando e gesticulando muito forte com o sacerdote. Não sei o que houve, mas depois desse dia ela nunca mais foi, nem me deixou voltar à igreja. Ali, naquele tempo, eu já sabia o que significava a cabeça de meu pai entre as pernas de minha mãe. Era quase um masturbador profissional. Entretanto sabia que ainda faltava algo em mim que por certo se concretizaria algum dia.

– Ah, Luciana! Que maravilha de sangue.

Era um silogismo em que faltava a inferência da conclusão. Eleonora então fazia o seu trabalho regiamente: fazia a comida, lavava a roupa e banhava meu pai todos os dias. Eu a olhava com uma fome diferente. E algo grunhia na minha barriga, descendo pela virilha. Comecei a pensar qual seria o dia da sangria de Eleonora. Tentei de várias formas olhar o volume entre as pernas dela mas não conseguia discernir. Eleonora era tão grande quanto o que havia entre as pernas. Não sabia se o volume que via era natural ou fabricado colado à calcinha. Também ela fechava a porta durante o banho, bem fechada, além de, ao que parece, tampar a fechadura com papel higiênico.